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Gravo teu Grito: Fora e Dentro do Museu

Gravo teu Grito presta solidariedade aos educadores agredidos pelo Governador e Polícia Militar paranaenses. É preciso que o grito seja ouvido e não calado à força.

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Pegamos jacarezinho na abertura da exposição ondeandaaonda, lá no Museu, para gravarmos uma diversidade de pessoas com interesse (manifesto ou não) em gritar. "Museu" é como normalmente chamamos em Brasília esse órgão com denominações inconstantes: M. Nacional, M. da República, M. Honestino Guimarães... Sem desvios, porém, tenho interesse em relatar algo específico à missão de Gravo teu Grito. O trabalho foi ao Museu, a convite do amigo Dalton Camargos, da Alfinete Galeria. Numa perambulação entre o fora e o dentro, o arquivo geral superou os 220 fonogramas. Foram aproximadamente 50 naquela noite do dia 30 de abril. Não estou na condição de criador, simplesmente sigo o propósito que o trabalho me coloca: estar a serviço das zonas temporárias de autonomia e inter-subjetivação, sem forçar nem impedir que elas perdurem.

Colaboradores, ouvintes, vedores e pessoas querendo conversar nos deram o prazer de abrir e propor configurações do espaço em comum. Prazer não significa que nessa experiência não haja dor e que ela esteja livre de incômodos: bom e ruim não são opostos, estão entrelaçados, em muidos casos indiscerníveis. Grandes prazeres podem levar a posteriores inconvenientes; algumas privações podem ser boas para o corpo; ou então os prazeres de fato proporcionam satisfação e as privações levam à dor. Não há regras capazes de fixar essas relações, definitivamente. Qual alívio posso sentir ao conseguir relatar um trauma? Ou então: pode ser que o relato me leve a revivê-lo de tal modo que emocionalmente me fira. Antigamente alguns santos pregavam: "para se ver a luz é necessária a escuridão". Mas a ideia de haver uma purificação evolutiva (quanto mais sofrimento mais evolução espiritual) não só nos defronta com uma exigência iminentemente sado-masoquista como impõe a submissão da vida em comum (a comunidade dos que se lançam à penitência) ao controle centralizador. Ainda assim, embora se tenha pretendido substancial e universal, essa ideia foi válida para uma religião, uma circunscrição e uma época sobre a qual se impôs. O que nela excedeu o Império Romano se deve, em grande parte, ao colonialismo e à força, mas onde vivemos ainda estamos por recompor outras deidades, fora do templo já construído (a Igreja, o Museu) como edifício literal de concreto.

Mas como são o uso da força e o colonialismo atuais? Em toda parte uma quantidade grande de pessoas deseja a felicidade e a pretende achar no que lhes é oferecido como solução, no mercado. De fato, esse "bem" proporcionado se mostra, a cada dia, em mais suspense, pois é valorado de tantas maneiras que dificilmente sairá da relatividade e mesmo da incerteza. Que é herdar e seguir o american way of life? Aderir hoje ao que há algumas décadas se impôs como intervenção bélico-mercadológica (o patrocínio americano ao uso da força do Estado Brasileiro contra habitantes cujos ideais desfavorecessem a expansão econômica neo-liberal neste território) mas que a paz e a tolerância emplacaram e endossaram, apesar dos pesares, sem que as guerrilhas de resistência pudessem tomar a cena por muito tempo? A distância entre local e global tem sido solapada, sob estilos de vida internacionais pós-industriais, e muitos realizadores e instituições tentam inscrever os discursos minoritários nesse movimento amplo do capital especulativo, para que haja alguma relação de ganha-ganha. Mas não está claro o que se ganha pelo sujeito comum que o busca, a não ser comodidade a um custo elevado para a liberdade, nem devidamente apresentadas as minorias que se perderam no movimento de planificação e extermínio cultural.

Gravo teu Grito me põe diante do imprevisível das micro-relações. Na sua trilha, desejo chamar pelo comum, e o que responde nesse comum muitas vezes não tem nada de harmonioso. Convivência e controvérsia andam unidas e, talvez por isso, as elites brasileiras não correm o risco do local, pois nele temos de conviver, quando elas já conquistaram o espaço que desejam dentro do capital internacional. O que fazem, portanto, é sufocar o grito para diminuir o risco de terem de sujeitar-se à mudança, e a classe média parece nutrir a mesma tendência de assegurar a si mesma como se o único capital simbólico possível fosse a renda e a especulação - matriz da higiene social que ela reivindica para suas propriedades muradas. Mas, como ainda vivemos juntos no espaço simbólico e urbano, a controvérsia contradiz o aristrocratismo dos que tentam viver cegos ao conflito.

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Ondeandaaonda afirma um ideal cartográfico. Seu subtítulo é "cartografia das artes plásticas no Distrito Federal". Uma cartografia tem por finalidade a construção de mapas, que são produtos gráficos, certamente estetizados, mas principalmente geopolíticos. Enquanto produto gráfico e estético, um mapa é criação mas, na atividade geopolítica, ele é base de interesses: avançar tropas, exercer controles econômicos, expandir mercados e dominar. A representação de um mapa que se torna público, portanto, divulga informações voltadas a favorecer quem encomendou a cartografia, pois, como instrumento de estratégia, sua exposição é cuidadosa. Uma vez que está gerado e difundido, o mapa leva à velha discussão sobre o globo ter como centro convencional a coroação do eurocentrismo e do Norte. Mas cartografia remete, ainda, à construção como ideal, pode não gerar um produto final e ser originada, portanto, do tecer inconclusivo de uma teia: aracnofilia. Só não sei se é esse o caso visto em Ondeandaaonda. Aliás, muito está fora do tecido exposto: excluídas teias inteiras que vêm sendo amorosamente esticadas por realizadores dedicados ao lugar da relação, dentro do qual ocorre o nosso corpo-a-corpo arte-mundo-humano. Gente que segue apesar das intempéries da República e incertezas a que as finanças e gestões dos espaços culturais, museus e galerias do DF e brasileiros estão sujeitos. Eu vi citarem, por exemplo, o Laje... E muitos outros associativismos libertários estão excluídos dessa onda cartográfica.

O que pretendemos da cena de arte Brasiliense, quando fazemos mostras supostamente "panorâmicas" sempre a partir do oportunismo? Um objeto como esse - a cartografia - fica barrado, de início, pela comodidade com que o Museu, ano a ano, preenche vazios de pauta com a demanda por incluir brasília no roteiro cultural brasiliense. E o faz impulsivamente, de modo que não me parece (embora possa ser que eu me engane) haver nada sendo traçado, a não ser edições de recortes mais ou menos aleatórios. Há, sob aquela cúpula museal, grande quantidade de artistas e um número interessante de galerias e espaços culturais convidados. O recorte, afinal, é dado pela naturalidade brasiliense desses espaços. Mas não podemos esquecer: Brasília tem profissionais capacitados para a crítica e a curadoria, atuantes, mas não estão nessa cartografia. Do mesmo modo os circuitos d`além muro, o sair da cidade necessário ao cartógrafo, ir ao Mato Grosso, ao Goiás, a outros centros - sejam minoritários ou hegemônicos - só ocorre incidentalmente, em virtude da diversidade dos acervos de algumas instituições convidadas. A Cultura Brasiliense-Republicana ainda se contenta com a panorâmica centralizada numa política imóvel. Talvez nos falte mais cinemática.

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