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Por mais barracas em áreas ditas nobres

Observar e vivenciar nossos arredores urbanos é uma raridade. Tenho estado imerso em fragmentos da suposta urbanidade brasiliense, que parece extremamente diversificada. De um local a outro, muda a paisagem. Paisagem - no conceito geográfico - é tudo o que a gente pode ver fixado no espaço do mundo a nossa frente (seja ele natural ou não), sem precisarmos criar um vínculo profundo, sentimental ou de outra ordem. Mas isso não deixa de ser marcante e mesmo explosivo, traumático, se mudamos de umas paisagens a outras seguidamente e de algum modo aceitamos encarar os contatos humanos sem nos guiarmos por normas de pertencimento a um grupo (econômico, profissional, político etc.).

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Bem antigamente, falava-se da "riqueza comum das nações". Uma ideia recorrente era que a competição pela propriedade e os recursos da terra levava à criação de leis para proteger os vizinhos da esperteza do outro ou, como nós habitantes de uma vasta e antiga colônia de exploração sabemos, para garantir regalias aos mais bem armados. O filósofo napolitano Giambattista Vicco, contemporâneo dos cartesianos, notou que os velhos conflitos relacionados à propriedade não tinham consequências só no campo do direito, mas também na estética. Um brasão ou insígnia, nesse contexto - para tentar resumir toscamente -, geralmente partem de uma afirmação visual da disposição a brigar e dilacerar o outro, com objetivo de manter um pedaço de terra e conquistar novos territórios e riquezas. Essas, são virtudes do soberano, isto é, do regime que ganha o apoio geral de um povo - e aqui não contam os (des)gostos meramente individuais.

Obviamente, se há ou houve culturas não alicerçadas na guerra, a tendência é serem dizimadas ou viverem sem teto. Quanta coisa boa deve ter sido perdida pela voracidade das nações? Andando sem rumo por este território brasiliense, que é muito bem dividido (quase exclusivamente) pelo capital, rascunhei mentalmente essa tese, pois os moradores de rua, até o momento, se mostraram muito educados e preparados para lidar com as diferenças, enquanto os donos de gigantes pedaços de terra parecem desligados do seio do mundo social e traduzem muito bem a lógica da competição e dominação. É apenas uma tese, reforçada por um fato incidental, é verdade, e por isso ela está mal apresentada. Mas vale compartilhar o relato que a incitou - quem sabe a conclusão do leitor não é diferente da minha? Aí vai.

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Estou numa rua em um setor de mansões. São cinco e pouco, quase seis da tarde, e observo o pôr-do-sol, enquanto decido como será executada uma ação nessa paisagem. Algumas pessoas chegam a duas das 3 mansões da rua. Não têm coragem de abrir os portões, permanecem em seus carros e percebo que me observam. Uma senhorita chega em seu veículo, troca algumas palavras com o senhor que me olhava atentamente há mais de meia hora e que eu havia cumprimentado sem grandes resultados (provavelmente seu esposo); ela dá ré no carro e dirige em minha direção. Então, abre a janela e me questiona exatamente o seguinte: "o que você está aprontando por aqui? Tenho o direito de saber, afinal, está na frente da minha residência!". Não posso exigir dela algo melhor, apenas foi o modo, um tanto rude, como conseguiu caminhar (sobre rodas) até mim e iniciar o assunto, e foi isso que me interessou.

A forma dominante de abordar a riqueza comum das nações - que envolve a capacidade de desenvolver códigos jurídicos e estéticos com base no espaço - se mostra nessa fala. Uma propriedade - e o espaço da intimidade, do ego - naquela área supervalorizada vai bem além da área cercada, os olhos de águia estão atentos, as lanças afiadas para quem se aproxime (a metáfora é uma alusão à iconografia dos brasões). Se olharmos passivamente para a ocorrência, concordaremos que os moradores estavam apenas garantindo a sobrevivência de suas famílias contra eventuais ataques. É de se esperar, numa cultura totalmente avessa ao pedestrianismo e ascéptica, que alguém à pé seja malvisto - não havia ali mais um único pedestre sequer - e que o espaço comum seja usado como extensão ou fortificação da propriedade individual. Resquício do colonizador que fincava espada na terra e mandava lavrar a escritura de tudo quanto sua vista abarcasse (a paisagem toda, independente dos fluxos humanos prévios). De fato: quem se atreve contra as invasões generosas dos ricos sobre as bordas do Lago Paranoá? O espaço ali tem um único dono, equipado com armas econômicas, jurídicas etc. E dotado de um ego em fase permanente de engorda. Por isso, suponho que uma ocupação persistente com atividades culturais e coletivas provavelmente reabilitaria a possibilidade do debate sobre as riquezas comuns. Um pequeno museu, palcos, grupos de teatro... Enfim, parece necessário levar cultura para o povo.

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Saí dali e hoje fui novamente às margens do lago, área das mais valorizadas para o mercado imobiliário, mas dessa vez na praça dos orixás. Um magnífico e vulnerável acampamento me acolhe visualmente. Coloco a câmera e o gravador para gravarem e executo a ação que pretendia. Os moradores das barracas me viram, mas respeitaram e continuaram suas atividades. Antes que eu saísse, um deles chegou cantando, deu as boas vindas e puxou assunto, dizendo que tinha necessidade de comprar arroz. Eu digo que vou ajudá-lo, ele me concede um longo passe e lança uma magia destinada a minha prosperidade, com evocação de Oxum e Iansã. O local está povoado por muitos humanos de muitas entidades espirituais e a abordagem às pessoas que chegam de fora se faz como um jogo de sedução. A abordagem do bem comum ali - incluindo a terra e a moradia - é ameaçada pelo nosso estado de direito, que nesse aspecto faz coro com a ética da desigualdade social, mas é interessante observar que as dinâmicas e fluxos são mais voltados às trocas, não à criação de um poder monocrático e colonizatório. É algo que fatalmente será exterminado naquele local por armas que pensam o comum em termos de competição e dominação egóica, mas que felizmente se mudará, isto é, permanecerá em movimento. Com isso, lembrarei da Praça dos Orixás com satisfação.

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