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Estética, percurso, disposição, liberdade

Há alguns meses, a participação na mostra Nossa Exposição de Desenhos me motivou a escrever o texto abaixo, que havia ficado inacabado e ao qual - além de revisar - tentei acrescentar uma conclusão. Existe muito fora dos espaços institucionais, mas, em se tratando deles e da possibilidade de que veiculem arte, algo peculiar merece ser considerado...

(detalhes sobre o trabalho com que participei da mostra podem ser acessados aqui)

Voltei à CAL (Casa da Cultura da América Latina do Diretório de Extensão da Universidade de Brasília/DF) depois de quatro anos, foi a quarta vez desde 2004, ano do que posso chamar de “primeira montagem de vitrine da minha vida” - na Galeria de Bolso. Pois esse espaço é literalmente uma vitrine voltada para a rua. Sinto-me impelido a resgatar o ciclo. Primeiro, porque acho que o percurso descrito por um conjunto de trabalhos de arte se aproxima da verdadeira obra, em sentido amplo - diferente de um objeto de arte, que é um elemento fragmentário dentro de uma construção de percurso onde vários objetos sejam (ou não) ex-postos (a obra não é o objeto). Depois, porque essa obra-em-progresso que me levou até o trabalho Três Turas - recentemente exposto - demonstra algumas mutações e adensamentos resultantes, justamente, da persistência em realizar-se e do embate com o campo de forças contido nessa arena que é o espaço de arte.

A “arena” já se forma no momento mesmo em que se impõe o mito condicionante de que a obra só possa existir se contemplada, no embate entre o olhar e a coisa olhada. Acredito que esse limitador “o-olhar-do-público-faz-a-obra” seja equívoco ao pressupor a relação 1 pra 1, já que uma obra inclui o exercício permanente e não apenas os fragmentos desgarrados (objetos de arte), além de poder ser prolongada. Este texto, por exemplo, compõe a obra, ao mesmo tempo em que amplia o seu regime de visibilidade e a conduz por outros tipos de textualidade e de possíveis leituras. Porém, chegará um dia, quando a humanidade estiver exterminada ou transformada, em que não veremos mais as obras de arte, mas isso não as fará deixar de existir, de modo que, se a cultura desaparecer por um lapso temporal e em seguida retornar, os objetos culturais que eventualmente permanecerem talvez posam ser novamente vistos. Significa que a não-visibilidade não implica em inexistência. O que percebemos e ligamos ao imaginário define apenas o nosso mundo real agora, mas isso não assegura o estatuto da arte (como categoria) para uma eternidade.

Pois bem, Nossa Exposição de Desenhos, organizada por Quarter to Three P.M. (pseudônimo de Polyanna Morgana) foi a ocasião de minha nova passagem pela CAL. Essa Casa de Cultura oferece três galerias totalmente diferentes e localiza-se em meio a intenso fluxo de pessoas que trabalham no Setor Comercial Sul, vão às compras, procuram por sexo, bebida e outras diversões; estão em seu dia-a-dia, obstinadas para chegar ao metrô, exibir seu corpo, vender coisas etc.

Significa dizer que o fator “localização”, além de não ser suficiente para atrair quantitativos grandes de visitantes, pode repelir a aproximação de pessoas mais abastadas, preconceituosas ou simplesmente inibidas, já que o local junta diversidades. Além do mais, durante todos esses anos, sempre que fui ao espaço para ver mostras na Galeria de Bolso ou na Galeria Acervo precisei localizar um vigilante na Galeria Subsolo e pedir-lhe para abrir as demais portas nos outros andares. Esse tipo de dificuldade pode ter sido mais um fator de inibição da visitação.

Isso é só para destacar a situação altamente peculiar desse espaço, a começar pela quantidade de relacionamentos que se trava no percurso (camelôs, vendedores de pastel, inventores ambulantes, profissionais do sexo, vigilantes, bancários, etc.). Trata-se de um incrível “work-in-progress” que me faz amar estar a caminho e me motiva para ir até lá. Ademais, a experiência coloca a toda prova a vontade e a liberdade em ir a um lugar, pois uma pessoa que só acredite na disponibilidade total, indubitável da obra - do objeto, da obra-prima - jamais adentrará esse contexto, a não ser que esteja de fato atraída e interessada pela experiência da arte.

Penso vivermos em um momento no qual necessitamos recuperar a intencionalidade de nossos gestos e, nesse sentido, não posso concordar que uma obra facilmente vista é necessariamente mais “democrática” que outras, como defendiam (não sem ironia), por exemplo, os performers Gilbert & George nos anos 80, pois me parece que a democracia é dependente do exercício da pessoa na construção do bem público. Qual o exercício mais intenso: a procura pela CAL por alguém que nunca foi lá ou a compra de um pacote de viagem para uma visita turística a um museu famoso? Qual das duas experiências te colocaria mais a caminho de uma construção social e da vida na cidade e não apenas da aceitação de um status? São escolhas que te colocariam em mundos muito distintos, e acho que a caminhada à CAL tem chance de ser bem mais interessante. Isto não é uma defesa da virtude que um bom católico faria, pois, obviamente, “virtude” é um termo muito vago.

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O outro aspecto a comentar começa pela estratégia de seleção de propostas de ocupação. Não quero dizer que os chamamentos públicos em geral sejam elogiáveis - não são -, mas ali, o programa de ocupação não prevê ajuda financeira, simplesmente oferece, gratuitamente, a possibilidade de ocupação de galerias absolutamente fenomenais e particularíssimas, sem equiparação entre si nem com outras galerias da cidade. O que há de interessante nisso? A limitação orçamentária e de recursos dedicados à administração possibilita que o artista coloque energia em situações compatíveis com a realidade, isto é, não capitalizáveis.

Não conheço outro programa que fomente dessa maneira o desenvolvimento de linguagem, a investigação em arte e a diversidade cultural. No quesito “diversidade cultural”, há um contraste notável, por exemplo, com a mentalidade “padrão FIFA” que, por onde passe um jogo de futebol, comete o crime de cobrir todos os grafites e pichações do espaço urbano público e coibir as prostitutas ao ar livre, uma agressão a algumas qualidades do lugar. Ao aceitar esse padrão de vida, o nosso país é conivente com a agressão a manifestações minoritárias, contrariamente aos slogans e chavões disseminados oficialmente acerca da diversidade cultural. Mas, se o espaço cultural do qual estamos falando está vinculado à universidade e, portanto, ao governo, temos, enfim, algo que destoa do padrão praticado nos grandes empreendimentos da gentrificação - e isso é incrível.

Outro efeito da estrutura reduzida da CAL é a considerável atenuação da pretensa "boa imagem" bajulada por grandes marcas que, ao investirem em arte, podem estar adotando somente uma estratégia de redução de custos com publicidade (que são incomparavelmente mais altos). Isso se coloca em nosso momento histórico, quando o excesso de institucionalização pode, eventualmente, encobrir ideias que não são partilhadas pelas instituições, não só porque toda seleção é fatalmente excludente, mas porque corre-se o risco de intervenção no que uma obra pode ou não veicular, em vista de interesses mercadológicos e acionários envolvidos. Parte desse pensamento também é plausível para uma galeria de arte particular, que necessita do lucro para se sustentar.

Quando se fala em “instalação” ou em trabalhos feitos para ocuparem espaços específicos, nem sempre tratamos de estética. O que está “no lugar” mobiliza um campo de tensões na instituição com a qual se está lidando, assim como uma linha cria um campo de relações dentro de um desenho. Uma das diferenças entre como um desenho surge ou uma instalação vem a ser o que é está na maior ou menor possibilidade de controle da situação pelo artista e no radical deslocamento do X da questão. Pois, no que chamamos obra, o artista lida com problemas de uma poética, com perguntas e buscas singulares, enquanto a instituição não põe o trabalho de arte apenas do ponto de vista artístico e não adere à arte pela arte, o que ela expõe ou proporciona não é a proposta artística por si mesma - há casos até bem difundidos de censura, posteriores aos anos 2000.

A exposição em uma instituição é um gesto coletivo no qual, quase sempre, buscam-se propagar preceitos e ideais de uma determinada ordem e essa busca envolve muitas vezes uma grande assimentria, já que a oferta de recursos à arte é bem menor que a procura por esses recursos. Uma das bases dos incentivos fiscais relacionados à arte é justamente essa, o empresário tem a oportunidade de propagar sua marca ao mesmo tempo em que contribui com a arte e, em troca, recebe abatimentos em impostos. A escolha do projeto patrocinado, portanto, acaba envolvendo um julgamento - estético, sociológico, político etc. - unilateral, mesmo que inadvertido, por parte de quem escolhe.

Na CAL esses interesses extras se colocam em escalas muito pequenas, muito próximas do humano, o que faz dela um lugar de meditação, em que o artista tem condições experimentar-se e sentir como um yogue as respostas imediatas do contexto. Há casos clássicos. Certa vez, quando fui visitar uma exposição individual que eu realizava na Galeria Acervo, o vigilante para quem pedi a abertura do espaço tentou me dissuadir de entrar: “Você tem certeza que quer ver essa exposição aí? É muito ruim!” Perguntei-lhe o porquê, depois reforcei os argumentos dele, com os quais eu concordava em grande parte. Outra vez, uma instalação foi varrida pelo pessoal da limpeza, resposta forte, direta e aberta à solidez pueril da obra.

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Por fim, há um aspecto político a comentar. Em sua estratégia, a CAL, que não cacareja o heroísmo de conseguir manter-se de pé, está relativamente imune à usurpação política. Pois, além de não ter o lucro como objetivo, ela aceita veicular obras cujas mensagens carregam obscuridade - o que está bem de acordo com a necessidade de experimentação. Em contraste, o lado político de diversas instituições que patrocinam a arte as faz divulgarem-se como heróicas e ocultarem o que é obscuro em detrimento da nitidez da mensagem.

Nesse sentido, bastante minoritário, parece-me que o contato apenas experimental com o mundo, a possibilidade de vivenciar algo para o que não teremos retorno algum, segundo o que não somos obrigados a tomar partido, que não nos levará ao lucro e porá em questão o nosso próprio esforço em buscar alternativas de vida e de visualidade é uma carência em nossos dias. Por isso, arrisco dizer (e recomendar) que a caminhada (à pé, obviamente) seja uma forma de radicalizar a vivência do presente e levar à participação, pois é um princípio de experimentação, mas é preciso, ainda, que se tente caminhar até um lugar, mesmo que você não o encontre ou não saiba muito bem que lugar é esse.

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